Recentemente admiti que tenho um medo louco de morrer sozinho e anônimo. Mas como a companheira do medo é a covardia, revelei a fobia para apenas três amigos, distintos e, convenientemente, distantes. Esse medo, creio eu, nasceu comigo. E formou-se na imagem de um dos poucos romances que li ao final da década de 80. Como já disse em outras publicações, sempre fui e sempre serei um leitor preguiçoso e afoito. Se tiver em mãos um resumo, lá vou eu por esse atalho. Se ainda usasse o tempo que sobra para mais leitura, ainda vá. Mas ganho tempo ali para ficar de papo pro ar pensando a morte das bezerras. Exceto quando o romance me pega pelas fraquezas que tenho: o amor em sua face estritamente romanesca e os medos. Camilo Mortágua pegou-me pelo medo. Não quero aqui depreciar a obra de Josué Guimarães alegando um motivo tão fútil; o romance é excelente. A história ainda acontece no bairro onde morava e os locais descritos no enredo são os mesmos que conheci durante minha infância. O resumo do romance está logo abaixo para aqueles que quiserem lê-lo, cabe explicar contudo que Mortágua era um velho e morava em uma pensão no bairro Azenha, em Porto Alegre. Frequentava o cinema do bairro (Roma), onde vê, projetado na tela, a história de sua família. E lá, quando o filme de sua vida acaba, acaba também a sua vida. Onde entra a minha fobia? Na descrição precisa do quarto de pensão onde morava, banheiro no corredor, rotina diária de tomar café no quarto, dar as migalhas de pão aos pardais que frequentavam sua janela que tinha como vista os fundos dos edifícios vizinhos. Para dizer a verdade, talvez haja aqui alguns equívocos nos detalhes que possa ter adicionado ao longo dos anos, coisas emprestadas de outros romances, coisas criadas sem ter-me dado conta. Mas a razão de ter eleito esse romance para materializar meu medo está estampada em Camilo Mortágua. E por causa dele, hoje quem não conhecia, passa a saber da existência de um dos romances mais importantes da literatura gaúcha escrito pelo saudoso Josué.
CAMILO MORTÁGUA
(Resumo do Livro)
Romance
publicado em 1980, Camilo Mortágua representa, na obra de Josué Guimarães,a
culminância de uma trajetória e, ao mesmo tempo, o retrospecto dos resultados
alcançados. A incorporação do trajeto histórico do Estado coincide com a evolução
da intriga, sobretudo com a biografia do herói que dá nome à obra. Nascido ao
final do século 19, o protagonista vem a falecer na primeira semana de abril de
1964. Com isto, o autor introduz no fluxo narrativa setenta anos da história
sul-rio-grandense; e, ainda que a família Mortágua, indiferente passe ao largo
dos fenômenos externos, emergem ao fundo as notícias relativas às guerras
européias, revoluções brasileiras, o suicídio de Vargas, enfim, os fatos mais
marcantes do século 20, misturados a trivialidades domésticas, mudanças nas
modas, novos costumes, etc.
Assim
sendo, se a história não é o eixo que suporta o transcurso dos acontecimentos,
ela ali está, e sua fusão a fatos miúdos do cotidiano, porém igualmente
relevantes segundo o modus vivendi dos Mortágua, reforça a evidência de que o
alheamento crescente desses significa seu paulatino deslocamento do poder -
econômico e social. Os setenta anos ocupados pela biografia de Camilo
correspondem ao processo de desagregação da classe dominante sulina de extração
rural. Transferidos para um centro urbano mais desenvolvido, a dilapidação das
propriedades dos Mortágua deve-se, de um lado,, à sua leviandade e falta de
tino gerencial; em outras palavras, decorre de sua incapacidade de adaptação ao
novo cenário, em que avulta a mentalidade empresarial burguesa. De outro lado,
são os acontecimentos históricos que empurram o País na direção da atividade
mercantil e industrial e isto, a família, envolvida com seus amores e culpas,
doenças e mortes sucessivas, não pode alcançar e compreender. O romance se
enxerta à temática da decadência. Camilo Mortágua, o protagonista, revê a
história de sua vida ao ir ao cinema. Na tela, em vez de Cleópatra, a Rainha de
César, o filme mostra a trajetória da decadência da família de Camilo. Eis o
recurso narrativo utilizado pelo escritor.
Como
contexto histórico, Josué utiliza os sofridos acontecimentos do golpe de 64. A
história se passa em Porto Alegre, recuperando o bairro da Azenha, a avenida
Independência, o parque Farroupilha, a avenida Osvaldo Aranha, a avenida João
Pessoa, a Faculdade de Direito, a Santa Casa de Misericórdia, a Igreja da
Conceição, etc. Nascido ao final do século XIX, Camilo Mortágua morre na
primeira semana de abril de 1964, fornecendo as coordenadas temporais que
facultam a introdução, no fluxo narrativo, de setenta anos da história sulina.
Os setenta anos de Camilo assentam-se numa seqüência narrativa dividida entre a
moldura - os cinco primeiros dias do mês de abril de 1964, durante os quais ocorrem
simultaneamente o golpe político e militar contra o governo constituído e a
revisão da biografia de Camilo - e a intriga propriamente dita. Esta apresenta
cronologicamente a vida do herói, cindida em três fases: a infância e
juventude, quando a família vive seu apogeu irresponsável, na primeira quadra
do século; a maturidade, durante a qual ele restaura o poderio econômico do clã
através da incursão no comércio e indústria porto-alegrenses; a velhice, quando
ocorre a decadência final, já na segunda metade do século.
Estes
setenta anos, que explicitam os temas descritos, mostram-se, no decorrer do
relato, embutidos em três noites, de modo que, na rapidez do écran, Camilo
assiste à sucessiva e galopante desagregação de sua existência e de sua
família, o que culmina numa morte inglória e quase anônima, na escuridão de um
cinema de bairro. Em outras palavras, todo o largo espectro da vida do herói
cabe inteiramente na semana de abril, durante a qual se dão o golpe militar e a
consolidação, no poder público, de seus líderes. Camilo, mais uma vez,
mantém-se alheio ao evento histórico, mas isso não significa que não faça a
parte dele. Pelo contrário, como se encaixa em seu começo, acaba por
imprimir-se neste princípio, vindo a demonstrar como o movimento serviu para
reavivar seres como ele, para a seguir, acelerar seu passamento. Este fato é
que dá sentido à moldura do romance, sem o qual não se faria a transferência
para o presente, assinalado este pela continuidade dos acontecimentos
desencadeados na semana em que é morto o protagonista.
Situando a narrativa no período
crucial em que se inaugura uma nova época da história nacional, o escritor o
traduz como um rito de passagem, que exige, para sua efetivação, um ato
propiciatório - a morte de Camilo. Por isso, condensa nele toda uma aventura
humana fadada ao sacrifício e revela a oportunidade de sua consumação. Nesta
medida, se o livro se propõe a reconstituir um passado para diagnosticar a
deterioração gradual de um grupo que exerceu um domínio inquestionável no Sul,
ajustando as peculiaridades do romance histórico à inclinação temática da
produção literária de Josué Guimarães, ele ainda se projeta para a atualidade
do leitor, lançando-lhe a indagação, sempre relevante, a respeito da
permanência ou modificação das circunstâncias que suscitaram a imolação de
Camilo Mortágua, no momento em que nada mais tinha a oferecer à existência.