sábado, 15 de outubro de 2011

Tempos de Paz - Monólogo de Segismundo



"Ai de mim, ai, pobre de mim!
Aqui estou, ó Deus, para entender que crime cometi contra Vós.
Mas, se nasci, eu já entendo o crime que cometi.
Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor, porque o crime maior do homem é ter nascido.
Para apurar meus cuidados, só queria saber que outros crimes cometi contra Vós além do crime de nascer. Não nasceram outros também?
Pois, se os outros nasceram, que privilégios tiveram que eu jamais gozei?
Nasce uma ave e, embelezada por seus ricos enfeites, não passa de flor de plumas, ramalhete alado quando veloz cortando salões aéreos, recusa piedade ao ninho que abandona em paz.
E eu, tendo mais instinto, tenho menos liberdade?
Nasce uma fera e, com a pele respingada de belas manchas, que lembram estrelas.
Logo, atrevida e feroz, a necessidade humana lhe ensina a crueldade, monstro de seu labirinto.
E eu, tendo mais alma, tenho menos liberdade?
Nasce um peixe, aborto de ovas e Iodo e, feito um barco de escamas sobre as ondas, ele gira, gira por toda parte, exibindo a imensa habilidade que lhe dá um coração frio.
E eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?
Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores surge de repente e de repente, entre flores se esconde onde músico celebra a piedade das flores que lhe dão um campo aberto à sua fuga.
E eu, tendo mais vida, tenho menos liberdade?
Assim, assim chegando a esta paixão, um vulcão qual o Etna quisera arrancar do peito, pedaços do coração.
Que lei, justiça ou razão pôde recusar aos homens privilégio tão suave, exceção tão única que Deus deu a um cristal, a um peixe, a uma fera e a uma ave?"

Pedro Calderón de La Barca

Poderia explicar antes de publicar esse maravilhoso monólogo, escrito em 1636 pelo escritor espanhol Pedro Calderón de La Barca, mas o próprio é tão maravilhoso que, antes de perderem tempo, o melhor é assisti-lo, antes; em segundos, com os olhos já marejados de lágrimas, vão supor, caros fiéis seguidores, que outro objetivo não há senão decompor em pedaços o seu coração, metáfora que abriga o sentimento humano. Uma vez comovidos, qualquer que seja essa minha tentativa vã de explicação, qualquer uma, lhes será boa. E eu, vendo meu peixe, partilho com vós o que o acaso me entregou e faço aqui a minha parte; se não crio, passo a criação adiante.
 O monólogo, ou solilóquio, como preferirem, parte do livro A Vida é Sonho, foi no Brasil usado primeiramente na peça teatral Novas Diretrizes em Tempos de Paz, de Bosco Brasil, e, em 2009, foi adaptada para o cinema pelo diretor e produtor Daniel Filho. Perdoem-me se há algum equívoco nessas informações, mas se o há, é irrelevante à finalidade dessa postagem.
Dois aspectos mais importantes devem ser destacados.
O monólogo, que se torna mais emocionante ainda se de antemão for sabido que está sendo proferido por um príncipe polonês prisioneiro em uma torre e que de lá faz indagações sobre vida e liberdade...
O talento do ator Dan Stulbach, que dá emoção ainda maior ao texto, por sí só já extremamente comovente.
E ainda um último detalhe, este sobre o filme: O ator Tony Ramos, que na pele do truculento Segismundo, carrega a tensão de fazer-nos odiá-lo durante toda a trama e, em meio às lágrimas ao final do monólogo, nos desata o riso. Fica apenas o registro, já que participou também como espectador na cena e o foco principal é o monólogo de Calderón de La Barca.

Dan Stulbach
Queria partilhar essa maravilha com vocês...aí está!

4 comentários:

  1. Obrigado por postar o monólogo. De fato é emocionante, não tem como lê-lo e não encher os olhos.

    ResponderExcluir
  2. irei ensaiar, pois quero declamar para minha própria admiração.

    ResponderExcluir
  3. Fantástico, e bela página do seu blog.

    ResponderExcluir
  4. Muito obrigado por postar, estou precisando estudar esse monólogo para uma apresentação, (critica construtiva) tente usar tons mais claros (bege, marrom claro) o site não ficará cansativo de se olhar, logo mais "limpo" parecerá.

    ResponderExcluir